Por Carolina Daher
Jornalista, colunista de gastronomia da “Revista Encontro” e curadora do festival “Fartura” (BH)
Eu já estive no Serro algumas vezes. O lugar que já levou o nome de Vila do Príncipe e Sêrro Frio fica lá para os lados de Diamantina. Foi uma comarca das mais poderosas das Gerais no século XVIII. Ouro e pedras preciosas davam aos montes nos rios de águas geladas que circundam o distrito. Relatos da época dizem que, em 1700, cerca de 6 mil pessoas haviam chegado às minas. No ano seguinte, já eram mais de 30 mil. A febre pelo enriquecimento rápido levou muitos e muitos aventureiros a morrerem de fome com as mãos repletas de ouro. Assim como em outras regiões mineradoras, a ordem era cavar em busca do que reluz e não do que alimenta.
Os ingredientes, desde os tempos mais remotos, vinham do quintal. Não há um nascido por essas bandas que não conheça taioba, ora-pro-nóbis e maria-gondó. Com os povos originários, os forasteiros aprenderam a colher frutas até então desconhecidas pelos paladares europeus e africanos como cagaita, pequi e jabuticaba. Entraram mato adentro e descobriram como cozinhar brotos de samambaia e umbigo de banana. Da mandioca, faziam tudo. Do milho, também. Era preciso comer.
Dos povos de África que desembarcaram na região, a maioria vinha do Congo, Angola e Costa da Mina, por serem nações que já dominavam bem as técnicas da mineração. Aos que não iam para os leitos dos rios e sim para as cozinhas servir a “casa grande” restava usar seus conhecimentos no preparo de insumos locais. Daí, por exemplo, vem o angu, que em Minas Gerais é até hoje preparado sem sal, ingrediente valiosíssimo na época e, por isso mesmo, restrito à mesa dos mais ricos. E foram, também, esses negros escravizados que nos orientaram no uso do quiabo, das folhas e pimentas de cheiro. Vindos de grandes impérios e muito desenvolvidos nas artes e religiosidade, os povos escravizados aportavam por aqui sem nada, com os corpos quase nus, mas com as almas repletas de sabedorias ancestrais - inclusive, culinárias.
Já os portugueses vieram, a princípio, para explorar tudo que era possível. A ideia era voltar para a terrinha. Mas com a descoberta de mais minas, viu-se também a necessidade de um forte aparato fiscalizador. Foi aí que a estadia se alongou. Mandaram trazer família da Europa. Com a chegada das “sinhás”, os hábitos alimentares ganham novas cores e formatos. Trazem, junto aos baús de couro, cadernos de receitas. Receitas essas que precisaram se adaptar à realidade dos trópicos.
Os doces conventuais são deixados de lado e entram as compotas com as frutas locais como mamão, goiaba e laranja nas sobremesas. Que fique registrado que a contribuição portuguesa aparece muito mais na organização de uma cozinha e no modo de fazer do que efetivamente no resultado. Isso se deve ao fato de que as senhoras portuguesas apenas “mandavam” e não colocavam efetivamente a mão na massa.
Claro que isso é uma brevíssima apresentação sobre o berço da riquíssima cultura alimentar mineira. Fico até um pouco constrangida por tal ousadia. Mas vou chegar lá. Voltando ao assunto principal dessa crônica, estive algumas vezes no Serro. Primeiro, em busca de conhecer seu tradicional queijo – cujos modos de fazer foram declarados Patrimônio Imaterial de Minas Gerais pelo IEPHA, em 2002 e, posteriormente, em 2008, declarados Patrimônio Cultural do Brasil, pelo IPHAN. Foi, no entanto, em 2022, que me apaixonei por esse lugar. Por ali caminhei em busca dos rastros de Dona Lucinha, a maior matriarca da nossa culinária, que morreu em 2019.
Maria Lúcia Clementino Nunes nasceu no Serro. Dona Lucinha, mãe de 11 filhos, foi muito além da mesa de casa. Ensinou os mineiros a comer e sentir orgulho de suas receitas temperadas com uma história secular. Foi com ela que aprendemos a exaltar a nobreza do jiló e da canjiquinha com costelinha de porco. Dona do restaurante que leva seu nome, mostrou para o resto do país o valor do fogão a lenha. Fez escola. Hoje, por onde se anda por esse Brasilzão, lá está um estabelecimento ofertando nossa gastronomia. E o tanto que nos honra ouvir que “Minas tem a melhor comida”, que “ninguém recebe como o mineiro” ou que “qualquer um se sente em casa em Minas”.
Nós acreditamos em Dona Lucinha. Foi-se o tempo em que sentíamos vergonha de servir um franguinho com quiabo e angu preparado na panela de pedra. Hoje, isso é só motivo de orgulho. Porque além da comida, cada preparo carrega a vida de todo um povo. E mais do que isso, carrega a força de mulheres que, assim como Dona Lucinha, transformaram seus tachos e panelas em salas de aula. Aprendemos e continuamos aprendendo a lição.
Sobre a autora
Carolina Daher é jornalista, colunista da “Revista Encontro” e curadora do festival “Fartura - Comidas do Brasil”. Também é responsável pela realização do “Encontro Gastrô”, considerada a maior premiação gastronômica de Belo Horizonte e Brasília. Como repórter, atuou nas revistas “Veja”, “Playboy” e “Estilo”. Carolina vive nas Minas Gerais e caminha pelo mundo em busca de histórias e sabores.
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