Fernando Torres
Doizum Comunicações
Eles põem sabor, qualidade à mesa. Os botecos apuram os pratos com o passar dos anos, sofisticam produtos populares, elevam o torresmo, o fígado, a linguiça, a língua, a moela, a couve, o jiló, a taioba... Chega-se à alta – ou seria baixa? – gastronomia nestes locais, a cada esquina, bairro da capital ou de cidades do interior. Sim, igualam-se a mesas sofisticadas. “Hoje, há botecos com ambiente e comida melhores que muitos restaurantes”, garante Rosilene Campolina, professora de gastronomia do Centro Universitário (UNA) e administradora do portal Chef a Chef.
Ela vê mais criatividade na construção gastronômica, folhosas feitas com técnicas, bom uso de manteiga de garrafa, de produtos vistos como populares demais. “Restaurantes não têm pratos como os deles, que estão mais arrojados. Antes, eram rudimentares, sem nenhuma pretensão com a aparência da comida.” Tudo junto à hospitalidade, à proximidade com o cliente, ao vizinho que mora ao lado. “Botecos são a nossa praia. A conexão é tão grande que até o Mercado Central é recheado de tira-gostos”, defende a professora. Há o tão típico fígado com em jiló, que foi parar no “Guinness Book”, com a maior chapa da iguaria, em 2018, que envolveu 12 chefs, entre eles Rosilene, Ivo Faria, Flávio Trombino, Edson Puiati e Eduardo Avelar. O título jogou luz internacional ao mercado de Belo Horizonte, que conta com cerca de 12 botecos.
No Brasil, já era conhecida a fama de capital dos botecos, haja vista os concursos gastronômicos voltados para a área - como o pioneiro “Comida di Buteco”, criado em 2000, para resgatar a cozinha de raiz. De Belo Horizonte, o concurso passou para todo o estado e, depois, ganhou o país. Atiçou o surgimento de outros eventos gastronômicos, como o “Fartura Brasil”, iniciado em Tiradentes; o “Boa Mesa”, de Caxambu; o “Festival Sabores da Roça”, de Extrema; e o “Diamantina Gourmet”.
‘Kachaça’, arroz, ovo e linguiça
Os eventos deram resistência a botecos antigos, como o Café Palhares, bem no centro da capital mineira, fundado em 1938, e frequentado por Juscelino Kubitschek, torcedores, músicos, políticos e boêmios. Antes, funcionava 24 horas e, depois, o fechamento passou a ser às 2h da madrugada. Hoje, o cardápio pode ser apreciado até 22h. O horário sofreu alterações, mas o ponto continua o mesmo, com 44 m² que abrigam um balcão em formato de U e 21 bancos fixos. O Café Palhares é conhecido pelo “Kaol”, nome dado pelo fundador João Ferreira e o radialista Rômulo Paes ao prato de arroz, ovo frito e linguiça – o K é de cachaça, que tradicionalmente precedia a refeição e era incluída no preço. Depois, foram acrescidos couve, farofa e torresmo. Hoje, pode vir acompanhado de pernil, carne cozida, dobradinha ou língua, ao gosto do freguês.
“Vendemos, em média, 300 pratos de kaol por dia”, informa Luiz Fernando Ferreira, dono do Café Palhares junto com o irmão João Lúcio. Eles abrem espaço no cardápio e criam outras receitas somente na época do “Comida di Buteco”. O Palhares foi vencedor neste ano, na 22ª edição, com “Cambito”, petisco que leva jarrete suíno, farofa crocante de cebola, mandioca e manteiga de garrafa. Já havia conseguido o primeiro lugar em 2021, com a bochecha de porco cozida ao molho de vinho tinto e vatapá de banana-da-terra e beterraba. Em 2009, com “Karacol de Pernil”, prato regado ao molho picante de abacaxi e hortaliças, também venceu o concurso.
Qual a razão de tanto sucesso, de ser unânime em paladares exigentes e outros nem tanto? Luiz Fernando vê esmero com a limpeza, feita constantemente. “Não é porque está no centro que íamos descuidar da aparência, da higiene do local”. Ele lembra da qualidade dos produtos: “procuramos sempre os melhores. A couve, usada no “Kaol”, vem todo dia de Mário Campos, na Região Metropolitana de BH. Sai da plantação e vai direto para a cozinha do Palhares, sem passar por refrigerador”. Luiz Fernando pensa em receitas para as próximas edições, não quer deixar o pódio depois de dois anos consecutivos em primeiro lugar. Nos planos, a sucessão na própria família. Ele prepara a terceira geração, o filho André, para assumir o Café Palhares, adquirido pelo pai João Ferreira, seu Neném, em 1944, herdado por ele e seu irmão.
Resistência
Há que se resistir entre tantos estabelecimentos tradicionais e outros novos que estão chegando nestes tempos em que botecos se firmam à mesa da boa gastronomia. É o caso do Léo da Quadra, no Barreiro, em Belo Horizonte, que começou no local de jogos de futebol, atraiu clientes além dos esportistas, e ganhou o grande público no “Comida di Buteco”. Ficou em sexto lugar na primeira participação, em quarto na segunda e em quinto neste 2022, com a feijoada feita com grão-de-bico. Tudo criação de Leandro Damião de Freitas, o dono do bar, que combinava as receitas com a mãe, dona Hilda, falecida em 2021.
“Hoje comando a cozinha sozinho”, diz Leandro Damião. Vai da picanha com fritas à rabada com batata, passando pelo torresmo de rolo com molho especial e limão e pela coxinha de costela, carne de panela e pão de alho. O proprietário lembra do primeiro prato para o concurso gastronômico, em 2019, o “Lambisco” - ossobuco cozido, com mandioca na manteiga e torradas -: “foi no susto e deu certo.” Ele torce para continuar a levar mais gente para as mesas de seu bar e guarda a experiência da pandemia da covid-19, quando viu as portas serem fechadas e a abertura do delivery. “Sobrevivemos”, desabafa.
Torresmo, o rei
“Avalio a comida de boteco de Belo Horizonte como a melhor do mundo neste quesito popular”, afirma o jornalista Daniel Neto, o Nenel, criador do blog “Baixa Gastronomia”. Ele já visitou mais de 500 na cidade e não esconde o encantamento: “muitos me surpreendem.” Começou o interesse pelos botequins muito cedo. “Eu nasci e morei os primeiros 17 anos em cima de um bar. Para mim era a continuação de casa.” Depois, quando músico, saía sempre de madrugada para comer e tinha dificuldade para achar os locais, mas acabava encontrando. Gostou tanto que resolveu fazer relato destes bares. Não queria criticar e, sim, mostrar os que mais gostava.
Em primeiro lugar, a comida precisa ser boa. Depois, farta e ter ótima relação custo-benefício. O que não pode falar? “O torresmo é o rei das comidas de boteco”, responde de pronto. Sem ele, diz Nenel, não há gastronomia de boteco. Acrescente-se aí a história do lugar. “Eu gosto muito de usar a comida como fio condutor para falar das pessoas que dão vida a estes estabelecimentos.” São muitas histórias vividas por ele, de um lado do balcão, e pelos irmãos Palhares, do outro, nesta construção da comida, que sobrevive e se apura na mesa de um botequim.
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