top of page

Pai é quem cria, uai!

Por Walter Navarro (BH) Jornalista, escritor e entusiasta das culturas alimentares e histórias gastronômicas


Reprodução da Pintura "Caipira Picando Fumo" (1893), de Almeida Júnior

Quem tem mais de 40 anos e jogava futebol, mesmo que fosse só no colégio, lembra, e muito bem, da pomada Gelol. Ela podia até não eliminar a dor das pancadas, mas era geladinha, cheirosa e refrescante. Quem se lembra da Gelol deve lembrar também de sua mais famosa propaganda, na TV, cujo mote era: “Não basta ser pai, tem que participar. Não basta ser remédio, tem que ser Gelol”.


Em enorme minuto e meio, sem diálogos, um pai acompanha o filho pequeno numa partida de futebol. Depois de sair do banco, o menino entra no jogo e se machuca. O pai corre pro campo, massageia a perna do filho com Gelol e “goooooool!”.


Pai tem que participar e, pai de verdade, muitas vezes, não é aquele que apenas “bota filho no mundo”. É quem cria, educa, constrói um novo homem, com valores positivos. Esta teoria pode ser aplicada ao tema central deste projeto: a gastronomia, a culinária, a cozinha, a comida mineira. Por quê? Como assim? Calma!


Por exemplo, o macarrão é italiano? Há controvérsias. Muitos historiadores afirmam que sua origem é chinesa e há mais de dois mil anos. Outros rezam que o macarrão foi inventado pelos árabes, em Jerusalém, no Século 5. E que, ao conquistarem a Sicília, no Século 9, levaram a massa para a Itália. De lá, para o mundo.


A pizza é italiana, mas a melhor do mundo é paulistana! E o pão? E a cerveja? E a feijoada? Não importa quem criou o macarrão e tudo o mais: são de todos. Não basta ser pai, tem que compartilhar!


Finalmente, posso adentrar o tema! Há muitos anos, na “Revista da Biblioteca Nacional”, que nem existe mais, li uma matéria provocante e instigante desde o início. O texto começava pedindo perdão aos mineiros “porque a comida mineira era, na verdade, paulista”. Faz sentido, se Minas Gerais tem apenas 302 anos é possível descobrir quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha caipira. E guardem este caipira para daqui a pouco...


Nós mesmos, mineiros, somos filhos de paulistas; de bandeirantes e de indígenas que já estavam aqui com sua caça, pesca, mandioca, milho. Sem contar a influência dos negros, que vieram para cá sequestrados, como escravos. Somos fruto de múltiplas histórias e atravessamentos. E o mesmo serve para a comida mineira: o que a torna tão rica, única e muito mais mineira que paulista.


A história é longa, mas dá para ser orgulhosamente resumida.


Em 2013, comecei a contar esta história, com uma confissão. Sou um mineiro fajuto, não de ferro, mas de plástico, talvez reciclável. Nasci em Barbacena, mas fui criado e cresci em Campinas (SP). Então, amar Minas Gerais é um aprendizado diário que vou bebendo aos poucos, seja como Coca-Cola ou cachaça. Já misturei as duas e quase deu certo - um resultado tão vago quanto perigoso.


O que vocês acham de um mineiro que não gosta de pão de queijo? Mil perdões! Avisei que, além de fajuto, sou um aprendiz da “mineiridade”, palavra meio bairrista, redutora, quase antipática, pra mim, meio paulista que sou. A imbricação histórica entre a comida mineira e a paulista faz sentido e adoro coisas que fazem sentido. Repito: todo mineiro é paulista, já que fomos descobertos, criados e colonizados pelos bandeirantes paulistas, que aqui desbravaram, à procura de escravos, ouro e pedras preciosas.


Para as entradas e bandeiras era preciso comida, muita comida. Daí os bandeirantes, pioneiros como os do Velho Oeste norte-americano, vindo para Minas e batizando-a como Gerais, eram obrigados a trazer comida em lombo de burros. E que comida era essa? Coisas defumadas e salgadas que resistissem ao calor. Qualquer semelhança com o nosso tropeiro e derivados é nenhuma coincidência.


A comida mineira/paulista só parou de ser consumida em São Paulo, capital e outras grandes cidades, quando o rico estado importou hábitos europeus e relegou-a como baixa gastronomia, comida de “caipira”. Mas o interior paulista até hoje a adota, mesmo que com outros nomes. “Caipira”! Lembram da promessa acima? O adjetivo, que sempre foi pejorativo, hoje é um grande elogio aos brasileiros mais originais.


Em 2001, alfinetando Itamar Franco, o presidente Fernando Henrique Cardoso aconselhou os correligionários do mineiro (nascido em águas da Bahia) a “tomarem o caminho da roça”. Mas o ator Mazzaropi, ícone do “caipira” nacional, nasceu em São Paulo e a ilustração deste texto - “Caipira picando fumo” (1893), obra-prima da Pinacoteca do Estado de São Paulo -, é assinada por Almeida Júnior, que nasceu em Itu e morreu em Piracicaba, o supra-sumo do caipirismo paulista. Renato Teixeira, “Caipira Pirapora”, nasceu em Santos, São Paulo. O Sul de Minas fala caipira de São Paulo, e vice-versa.


Bernardo Drummond de Paula Menegaz escreveu e ensinou: “A comida de Minas Gerais é uma comida, antes de mais nada, prática. Não no modo de preparo, mas sim no consumo. Esta cozinha tem sua origem na época em que enormes quantidades de ouro eram transportadas em lombo de burro das montanhas de Minas Gerais aos portos do Rio de Janeiro. Fortemente sustentada na carne suína e nos laticínios, a cozinha mineira é fácil de comer cavalgando em uma estrada tortuosa do século 18, mas é deliciosa e também um grande atrativo do turismo mineiro assim como a cachaça, considerada a melhor do Brasil”.


Termino com um trecho da pesquisa de Luisa Destri, “Da mandioca ao milho, do indígena ao caipira”, de 2018: “Se Minas Gerais fez desse universo culinário seu patrimônio, uma tradição de técnicas, ingredientes e utensílios não são exclusividades mineiras, como se empenha em demonstrar o sociólogo paulista, Carlos Alberto Dória. ‘A cozinha mineira passou a existir em um contexto de desenraizamento dos paulistas em relação ao próprio estado, quando eles se voltam mais ao seu passado europeu ou asiático, e Minas Gerais investe na criação do mito da mineiridade’. Ainda que Paulistânia seja um termo cunhado por intelectuais de São Paulo que, entre as décadas de 1930 e 1940, propunham cultivar o mito bandeirante, a urbanização do estado no início do Século XX implicou um projeto político e cultural de modernização que rechaçou o “caipira”, colocando-o como símbolo do atraso, dissociando-o da identidade paulista. Enquanto isso, o estado mineiro construía como sua a culinária da Paulistânia”.


De 1800 a 1930, a Paulistânia já foi a terra do café. Hoje, Minas é o maior produtor e exportador do mundo. São Paulo entrava com o café, Minas com o leite, inclusive na política. E porque continuamos no reino do leite, nossos queijos são premiados até no Planeta Queijo - a França. E a cozinha mineira caminha a passos largos rumo à qualidade de patrimônio cultural imaterial da humanidade. Porque, parafraseando Tolstói, se queres ser universal, começa por tua aldeia ou, para rimar, por teu quintal.


Então, fica assim: a comida mineira nasceu em São Paulo, mas quem a criou e a engrandeceu foi Minas. E não se fala mais nisso.


 

Sobre o autor

Walter Navarro nasceu em Barbacena (MG) e mudou-se com a família, ainda moleque, para Campinas (SP), onde passou sua infância e adolescência. Voltou para as Alterosas em 1984 e, em 1989, graduou-se em Jornalismo e Publicidade & Propaganda pela PUC Minas. No mesmo ano, foi viver em Paris, na França, onde cursou Mestrado e Doutorado em Cinema, Televisão e Audiovisual na renomada Sorbonne I. De volta ao Brasil, em 1995, colaborou como colunista com o jornal "O Tempo" (BH) e, também como roteirista e cronista, com outros portais, sites e revistas. É autor de três livros: “O Canalha Amoroso” (2010) e “Creme e Castigo” (2012), e um romance, “5Garrafas” (2021). Entre os temas pelos quais é apaixonado estão as culturas alimentares e as perspectivas históricas da comida - motivo que o trouxe ao projeto Cozinha Mineira Patrimônio, o qual foi um dos primeiros apoiadores.





44 visualizações

Posts Relacionados

Ver tudo
bottom of page